terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

In memoriam

Quando ele acordou, era uma quinta feira como qualquer outra. De fato, era um dia como qualquer outro. O relógio marcava nove horas, mas para o resto do sul do Brasil, eram 10h. Para não se perder no horário dos remédios, preferiu não adiantar o relógio quando o horário de verão começou, quase três meses antes daquela fatídica quinta.

Então, dando continuidade a sua rotina, esticou o braço, ainda meio dolorido do tombo que havia levado dois dias antes, alcançou o sino que ficava ao lado da cama e tocou-o. Não demorou mais de dois minutos até que Vera, a doméstica/babá da casa, aparecesse para ajudá-lo a levantar. Com 94 anos, seu corpo velho e cansado já não respondia ao cérebro como ele gostaria, e ele havia aprendido a lidar com o fato de que precisava de ajuda física.

Levantou, vestiu-se, dispensou a ajuda de Vera e apoiou-se no andador que tinha em casa. Caminhou até a sala e encontrou a mesa do café da manhã já posta:  café com leite e duas colheres de açúcar, pão de milho e margarina. Comeu, andou até a poltrona que ficava ao lado da janela e ligou a televisão no mudo — não ouvia já há algum tempo, e então havia desistido de tentar escutar a TV.

Passou o dia perdido no silêncio que o aparelho de audição desligado o proporcionou. Observou bem o céu enuviado e buscou na memória as tardes de infância em que brincava e corria livremente. Viu algumas folhas caírem da árvore que ficava em frente a sua janela e reparou bem no sorriso das crianças que brincavam no pátio do condomínio.

Depois do almoço, escovou os dentes e dirigiu-se novamente ao quarto. O sono da tarde já era de praxe. Quando acordou, uma hora e meia depois, lembrou da dor no braço ao se esticar para tocar o sino. Dessa vez, chamou por Tereza — a mulher com quem vivia nos últimos 15 anos e com quem tinha um compromisso feito puramente por carinho e amor. Ela chegou, sentou-se ao seu lado e os dois começaram a conversar.

O tombo que levara dois dias antes também tinha machucado Tereza. E era o machucado de seu rosto que ele agora acariciava. Pediu desculpas, agradeceu todos os anos de parceria e secou uma lágrima de emoção que correu no rosto da amada. Pela última vez.

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