terça-feira, 5 de abril de 2011

Big Brother da vida real

Mal amanhecia o dia, tocava o despertador. Lívia levantava sonolenta, no automático. Não se importava em colocar uma roupa, já que tomaria banho depois e, por cinco minutos, alongava todos os músculos do seu corpo. Dobrava as cobertas, estendia o lençol, arrumava os travesseiros de maneira que ficassem bonitos sobre a cama.

No chuveiro, tomava banho de janela aberta. A ducha era seu momento relaxante do dia. Sempre foi assim, sempre gostou da água quentinha tocando sua pele arrepiada por conta dos minutos semi-nua que passava antes do banho. De volta ao seu quarto, Lívia escolhia a roupa do dia, passava creme no corpo e se arrumava. Todas as manhãs, sua rotina era igual. 

No desjejum, tomava meio copo de iogurte e comia uma única fatia de pão integral com margarina light. Comia em frente à TV, assistindo ao Bom dia Brasil. Era o único momento do dia que tinha para se informar e fazia questão de acordar mais cedo, só para assistí-lo. Antes de sair, Lívia fechava todas as janelas.

Durante o dia, as coisas seguiam um curso normal. Ônibus lotado em direção ao centro, ela sentia que era sorte quando conseguia sentar e abrir seu livro. No trabalho, a correria era sempre a mesma. O telefone não parava de tocar, os emails não paravam de chegar e a lista de afazeres não parava de crescer. Mas os 10 minutos para o seu café, eram sagrados. Todas as tardes, as 16h, Lívia parava tudo. Ia ao banheiro, lavava bem o rosto e as mãos e seguia em direção à cozinha. Preparava um café forte e abria uma barra de cereais para acompanhar. Como um botão de desliga, o cheiro do café e a mastigação automática a acalmavam.

A noite, ia à academia. Não sabia bem porque, mas todos os dias marcava presença e malhava principalmente os glúteos. Não gostava do seu quadril e pernas finas, não estava 100% satisfeita com sua barriga, mas no geral seu corpo a agradava. Ao chegar em casa, tomava banho mais uma vez e adormecia lendo algum romance.

Lívia era extremamente previsível, até que um dia não foi. Fez tudo igual, mas ao final da tarde, caiu uma chuva tão calma e tão forte ao mesmo tempo que Lívia quis fazer algo diferente. Não foi grande coisa, mas pulou a academia e foi direto ao banho. Com a parte de cima do pijama e com uma calcinha de bichinhos, ela não leu naquela noite. Em vez disso, ficou olhando a chuva cair pela janela.

De repente, viu um vulto. Procurou por alguma coisa confusa, mas não viu nada de mais. Olhou o céu. Chovia, mas as nuvens tinham texturas diferentes e pintavam o céu com tons de cinza... Um novo vulto, mas dessa vez ela conseguiu identificá-lo. O vizinho do prédio ao lado, do andar acima a observava escondido atrás de um pilar. “Ótimo”, pensou. “E eu aqui, só de calcinha”.

Demorou um pouco até que Lívia se tocasse que realmente estava só de calcinha e que estava sendo observada. Com o instinto de quem é tímido, ficou perdida e fechou a janela. Não gostou da sensação de ser vigiada e convenceu-se a dormir. No dia seguinte, fez quase tudo igual. Lavou roupa e, de pijama e shortinho curto, a estendeu na sacada quando, mais uma vez, notou que alguém a espreitava.

“Há quanto tempo?”, perguntou a si mesma. Começou a lembrar, uma por uma, de todas as vezes em que deitou nua na cama depois de uma noite difícil na academia e um banho quente. Pensou em todas as vezes em que se tocou, em todos os alongamentos das suas manhãs, em todo o tempo que passava nua, em frente à janela, escolhendo a roupa que usaria no dia. 

Ponderou sobre o quanto seu vizinho sabia de sua vida e esperou, pacientemente, que ele aparecesse na janela, novamente. “Talvez seja uma nóia minha”, pensou. Mas eis que aquela careca ressurgiu e se escondeu atrás do pilar por mais três vezes antes dela resolver ir dormir.

“Há quanto tempo?”. E agora Lívia estuda uma nova rotina. Uma que não envolva janelas abertas.

Um comentário:

Pages